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“O Estado é laico”; “não existe racismo no Brasil”; “nosso país não tem intolerância religiosa”. Será que isso tudo é verdade mesmo? Foi para questionar estas e tantas outras afirmações que ouvimos por aí, que os jovens Taís Capelini, Alexandre Borges e Fernando de Sousa gravaram o documentário Intolerâncias da Fé, veiculado no Canal Futura.

Durante dez meses de muito trabalho, aprendizado e surpresas, os profissionais conversaram com diferentes pessoas para saber mais detalhes dos praticantes de religiões afro-brasileiras, em particular o Candomblé e a Umbanda. O trabalho foi realizado no Rio de Janeiro, local brasileiro onde, segundo os dados da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), o problema é mais comum do que em outros estados do país.

“É uma luta muito árdua, pois a intolerância religiosa não se esgota no nível religioso. Se estende para o Estado, através do descumprimento das leis, através de representantes do poder Legislativo que incitam o obscurantismo e o ódio religioso, por exemplo. Também é um conflito presente no seio das famílias, no interior das escolas, nos locais de trabalho, nas comunidades. O caso das religiões de matriz afro é emblemático, pois o preconceito também está atrelado ao racismo – e sabemos que o Brasil é um país profundamente racista. Enfim, é um problema que se apresenta em termos micro e macro, em diferentes estancias, o tempo todo. Todos nós temos muito o que aprender com isso. É um tema urgente!”, afirma Taís.

Em entrevista ao Social Bauru, os jovens falam sobre a escolha do tema, a produção, dificuldades que enfrentaram durante o caminho e a maior lição que este trabalho trouxe para a vida deles. Confira:

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E como surgiu a oportunidade de fazer este documentário?
Fernando: O Canal Futura, através do programa Sala de Notícias, abre um edital todos os anos que visa absorver produções independentes. Em 2014, eu já havia participado da produção de um curta, “Manobreiro de Água”. Em 2015, surgiu a parceria com a Asha Filmes, através do Alexandre B. Borges e a Taís Capelini.
Taís: Mudei para o Rio de Janeiro para cursar uma pós graduação em Sociologia Urbana na UERJ, lá conheci o Fernando que trouxe a proposta de nos inscrevermos no edital do Canal Futura para curta-documentários.

 

E por que a escolha deste tema?
Fernando: A escolha do tema está diretamente relacionada com experiências de pesquisa e com minha formação em Ciências Sociais. Foi fundamental também a minha trajetória de militância e participação em movimentos sociais.
Taís: É, o tema foi proposto pelo Fernando, e achamos muito interessante e necessário. Eu, particularmente, já me interessava bastante pela temática que envolve aspectos religiosos – que hoje estudo no mestrado em Ciências Sociais. Além disso, sempre me identifiquei muito com as religiões afro-brasileiras, principalmente através das músicas, o que me estimulou a realizar leituras sobre o tema e a visitar um terreiro quando ainda estava em Bauru.

 

Qual o tempo de produção?
Fernando: Entre a elaboração da proposta, produção e a finalização do curta dedicamos uns 10 meses de trabalho ao projeto.

 

Quantas entrevistas vocês fizeram? E onde foram as gravações; em qual cidade?
Fernando: Todas as pessoas que entrevistamos estão presentes no resultado final. Um total de onze pessoas. As gravações aconteceram em terreiros de umbanda e candomblé, áreas e atos públicos de defesa da liberdade religiosa, como o que ocorreu na Vila da Penha, dias após a agressão sofrida pela Kayllane Coelho. As gravações ocorreram na Zona Norte e Oeste do Rio de Janeiro.

 

Vocês tiveram algum problema em fazer estas gravações? Enfrentaram algum tipo de resistência dessas pessoas?
Fernando: Não enfrentamos qualquer tipo de resistência das pessoas que decidiram falar conosco. O contato e o apoio das lideranças religiosas foi fundamental para a realização do trabalho, como é o caso do Marco Xavier e da Ekedy Josinete, que nos apoiaram muito. Inicialmente, gravaríamos com uma família que havia passado por algum tipo de discriminação na escola, mas eles acabaram desistindo, o que é compreensível haja visto a delicadeza do tema. Por outro lado, durante uma gravação externa na Vila da Penha uma senhora nos procurou porque gostaria de gravar um depoimento sobre uma situação que ela vinha passando. Uma vizinha, por saber que ela era adepta da umbanda, ligava uma caixa de som virada para sua casa com música gospel. São recorrentes os casos de intolerância religiosa e o Rio de Janeiro se destaca negativamente.
Taís: As pessoas que se dispuseram a falar conosco foram sempre muito solícitas e nos ajudaram bastante. Alguns imprevistos aconteceram, como no caso do dia da gravação com o Marco Xavier que seu centro foi profanado. Tivemos que suspender a entrevista que seria no período da tarde seguimos com ele até a delegacia para acompanhá-lo na empreitada para prestar depoimento. Testemunhamos a dificuldade que foi ele ficar horas esperando e não ser atendido. Outras pessoas que inicialmente toparam falar com a gente, acabaram mudando de ideia, com medo de alguma represália devido à exposição. Nós entendemos perfeitamente esse receio, pois ao longo da gravação quase diariamente éramos informados de algum tipo de ato motivado por intolerância religiosa. Segundo os dados da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) o problema que é mais comum no Rio de Janeiro do que em outros estados do país.

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Quais as surpresas que tiveram durante as gravações? Até em relação ao assunto, quais as descobertas e aprendizados?
Fernando: Ao longo das gravações nós acabamos sendo surpreendidos pelo destaque do tema na mídia. O caso da Kayllane Coelho ganhou uma repercussão muito grande na mídia e nas redes sociais. Mas são inúmeros outros casos que acontecem e que não ganham a mesma repercussão na grande mídia. Ao longo de 2015, houve um recrudescimento considerável dos casos de discriminação religiosa, o que está diretamente ligado com o cenário político que vivemos. Atualmente, temos representantes no poder legislativo em níveis municipais, estaduais e federal que expressam e incentivam o ódio religioso. Isso é muito grave já que em teoria vivemos num estado laico.
Taís: O processo de produção do Intolerâncias da Fé foi marcado por muitas aprendizagens, em todos os sentidos. Desde a pré produção, onde nos debruçamos mais profundamente à pesquisa sobre o tema, seja através de leituras mais profundas, pela pesquisa imagética, pelo levantamento dos casos de intolerância religiosa. Também, ao longo das filmagens, quando as pessoas entrevistadas trouxeram algum depoimento novo, alguma questão que provocou reflexão. Aprendi muito com todas elas, e continuo aprendendo. Esse tema não é simples e não se esgota facilmente. É uma luta muito árdua, pois a intolerância religiosa não se esgota no nível religioso. Se estende para o Estado, através do descumprimento das leis, através de representantes do poder Legislativo que incitam o obscurantismo e o ódio religioso, por exemplo. Também é um conflito presente no seio das famílias, no interior das escolas, nos locais de trabalho, nas comunidades. O caso das religiões de matriz afro é emblemático, pois o preconceito também está atrelado ao racismo – e sabemos que o Brasil é um país profundamente racista. Enfim, é um problema que se apresenta em termos micro e macro, em diferentes estancias, o tempo todo. Todos nós temos muito o que aprender com isso. É um tema urgente!

 

O Brasil é um país com uma grande diversidade religiosa, mas com grande preconceito ainda. O que é muito contraditório, não é mesmo?
Fernando: Sim, realmente, o Brasil é um país que conta com a presença de uma grande diversidade de manifestações religiosas. Todavia, ainda é muito disseminada a ideia de que convivemos cordialmente com as diferenças, o que é absolutamente falso. É o famoso “mito da democracia racial” ou de que vivemos em um país multirracial. Um dos aspectos que o documentário visa mostrar é justamente como o movimento político de combate a intolerância religiosa busca trazer à tona os conflitos de discriminação religiosa. Os negros lutaram e conquistaram a liberdade formal, mas acabaram tendo os seus costumes e práticas sociais perseguidas ao longo do período da história republicana, inclusive através da criminalização oficial. É o caso, por exemplo, da criminalização das próprias religiões de matriz africana, sem falar da perseguição à capoeira e ao samba.
Taís: Como disse, o caso das religiões de matriz afro é emblemático, pois o preconceito também está atrelado ao racismo, o que se reflete na criminalização da práticas culturais e religiosas em diversos níveis. Mas, ainda no aspecto religioso, se antes os negros eram perseguidos pela Igreja Católica, hoje são aos segmentos neopentecostais que se atribuem os maiores casos de intolerância religiosa contra adeptos de Candomblé e Umbanda. Claro, que não podemos colocar todos evangélicos num mesmo bloco monolítico. Como disse Renata Menezes (uma das entrevistadas no curta), muitos evangélicos sentem que sua fala foi capturada por setores mais conservadores. Muitos deles denunciam o fomento ao ódio por parte de certas lideranças religiosas e representantes políticos, como é o caso do bispo Edir Macedo e do deputado Eduardo Cunha, por exemplo. Religião e política não estão separados, há inúmeros interesses por trás das falas acaloradas que vemos. O Estado, a escola, enfim, as instituições que de modo geral se dizem laicas, na prática não são. A mídia também tem um papel significativo no processo de estigmatização e criminalização das religiões afro, veiculando informações deturpadas e contribuindo para o aumento do preconceito contra os adeptos dessas religiões. Não sei como ainda tem gente que acredita que o Brasil é berço da cordialidade. Provavelmente, essa tal cordialidade só exista dentro do padrão branco-hétero-cristão – no masculino, é claro.

 

Quais as religiões de vocês? Já enfrentaram algum preconceito por isso?
Fernando: Sou de família católica, mas nunca frequentei com regularidade a igreja ou sequer passei pelos sacramentos da igreja, além do batizado. Não digo que sofri preconceito, mas o fato de assumir que frequento o terreiro acabou gerando comentários por parte de familiares, em alguns casos discriminatórios. E hoje sinto que essa escolha é respeitada. É uma luta, seja no âmbito da família, do trabalho e no espaço público em geral.
Taís: Sou de família católica. Mas, nunca frequentei a Igreja com regularidade e também não me identificava com aquela formalidade toda. Hoje, não tenho uma religião, mas possuo um vinculo espiritual com Yoga, que pratico e estudo desde dos 16 anos. Dentro dessa tradição não há problema nenhum em uma pessoa ser devota de Ganesa ou Iemanjá, por exemplo. As diferentes deidades e religiosidades são vistas como aspectos de um Todo.

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A opinião de vocês em relação à fé acabou mudando com o documentário? Qual a maior lição que este trabalho trouxe para vocês?
Fernando: Não diria que houve uma mudança com relação à fé, mas sim com relação aos diferentes olhares e perspectivas que podemos ter sobre o tema. Talvez o grande aprendizado tenha se dado nas conversas com as crianças entrevistadas, seja pela delicadeza do assunto ou mesmo pela forma como elas falam e experimentam as discriminações. Precisamos ficar atentos aos sinais das crianças que frequentam os terreiros. Aprendemos muito durante as filmagens e entrevistas e continuaremos a aprender com as exibições e debates que estamos participando. Está sendo muito rico.
Taís: As falas das duas meninas – Leandra e Kayllane – me deixaram bastante comovida. No caso da Kayllane, como a agressão sofrida havia se tornado notória através da grande divulgação midiática, eu já estava mais preparada. De certa forma sabia o que seria dito. Mas, no caso da Leandra, nós só conhecemos ela e sua família no momento da gravação. Seu depoimento foi muito impactante, me contive para não chorar na hora da entrevista. Mas, depois, durante a edição e mesmo com o trabalho pronto me emocionei repetidas vezes ao assisti-la falando sobre o que sofreu. Para mim, foi muito significativo poder contribuir de alguma forma com esse tema tão urgente. Entrar em contato mais direto com as pessoas que vivenciam esse tipo de intolerância religiosa na pele, especialmente as crianças, foi uma grande lição. As coisas ainda estão reverberando. Acho que isso é uma sensação comum a todos nós da equipe, por isso que é a todas as crianças e jovens adeptos das religiões de matriz afro brasileiras que dedicamos esse trabalho.

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